domingo, 4 de abril de 2010

Precariedade e novas resistências operárias - José Nuno Matos


A grande transformação
O fenómeno vulgarmente designado por Maio de 68 – um termo redutor que diminui todo um conjunto de manifestações de resistência política aos acontecimentos em curso na sociedade francesa – resultou essencialmente da recusa do modo de vida alicerçado no trabalho abstracto. Aos poucos, tornaram-se perceptíveis as contrariedades de uma sociedade baseada na produção e no consumo em massa. O sistema laboral fordista – inicialmente encarado como um dos pilares da estabilidade de uma população dilacerada por duas guerras mundiais – reduzia a capacidade de acção dos trabalhadores à repetição estandardizada de duas ou três tarefas. A regularidade e a estabilidade acabaram por dar lugar à fadiga e à depressão, e, logo, à diminuição dos níveis de produtividade. A revolta das fábricas e das universidades veio apenas tornar manifesto o que há muito estava latente.
Estes factores, consubstanciados pelos efeitos da crise petrolífera, levaram a uma reformulação das bases infraestruturais da economia, nomeadamente dos princípios orientadores dos mercados de trabalho. Conceitos como "flexibilidade", "racionalização de recursos humanos", "adaptação" e "competitividade" passaram a constituir parte do jargão economicista, anunciando uma nova ordem laboral inteiramente determinada pelos níveis de oferta e da procura de emprego. A adequação entre estes dois factores traduziu-se na criação de vínculos contratuais bastante frágeis — o contrato a prazo, o trabalho a tempo parcial, o trabalho temporário ou recibo-verde — de modo a facilitar tanto a contratação, como o despedimento.
A argumentação teórica em torno destas medidas esconde, no entanto, o acentuar da guerra social do capital contra as pessoas. Num contexto em que as empresas são dotadas de um poder de (des)localização quase ilimitado, seleccionando países e regiões de acordo com os respectivos níveis de submissão aos seus interesses, e em que a produção resulta não tanto da quantidade de trabalhadores, mas sim da sua qualidade, o acesso a bens e serviços de necessidade básica continua a depender da posse de um emprego. Como afirma Hannah Arendt, "O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho" (Arendt, 2001: 16). Assim, a ausência ou intermitência de uma fonte de rendimento impedem a mínima previsão de futuro pessoal, minam a existência, precarizam a vida.
No imaginário social dominante, fugir a este sentimento implica alinhar com os intentos do patronato e aceitar as regras de jogo por eles definidas — salários baixos, horas extraordinárias não pagas, ausência de protecção social — impondo nas empresas um ambiente de “paz social podre”: o boato, o esporádico erro propositado ou a danificação escondida do material são muitas vezes as únicas formas de resistência, sempre realizadas de uma forma anónima e secreta. Na opinião de Javier Toret e Nicólas, está em marcha um fenómeno generalizado de devir migrante do trabalho, isto é, a aproximação do paradigma laboral fordista ao paradigma do trabalho migrante: “As condições laborais de que sofrem os imigrantes (informalidade na contratação, vulnerabilidade, vínculo intenso entre território e emprego a realizar, desprotecção sindical, temporalidade, total disponibilidade,...) vão estendendo-se progressivamente ao resto dos trabalhadores” (Toret, Sguiglia, 2006: 106).
A estratégia público-empresarial1 (fruto de uma incessante invasão de espaços sociais – tanto materiais, como simbólicos –, facilitada pelo abandono do estado e dos tradicionais actores políticos da modernidade) consiste, num primeiro momento, na criação de um estado de excepção laboral que ultrapassa os regimes legais, por si só já restritivos (o recurso em massa aos “falsos recibos verdes” e o não pagamento de horas extraordinárias, por exemplo). Simultaneamente, desenvolvem-se acções de pressão, lobbying e ameaça sobre as autoridades, apontando a “rigidez das relações laborais” como um factor desincentivador do investimento e promotor da deslocalização de unidades produtivas e do desemprego. Satisfeitas algumas das reivindicações2, as empresas podem reiniciar este processo, criando um novo estado de excepção laboral e exigindo novas reformas. Desenvolve-se assim um cíclo de exploração em que a vida das pessoas se vê completamente nua de qualquer protecção, pois o que é de direito e o que é de facto se tornou praticamente indistinguível (Agamben, 1998). 




Governamentalidades laborais

Paradoxalmente, o retrocesso das condições de vida no trabalho acontece à medida que aumenta o nível de dependência do sistema capitalista em relação à população trabalhadora. Não nos referimos apenas aos empregados especializados, cujas capacidades cognitivas equilibram a situação a seu favor na relação de oferta e de procura (pelo menos quando comparados com outros elementos da população activa), mas a todas as novas categorias de trabalhadores.
A imagem de uma sociedade constituída por trabalhadores ultra-qualificados e relativamente independentes encontra-se muito longe de ser uma realidade. Segundo Robert Reich, para além destes, existem outros sectores laborais não tão qualificados que, todavia, desempenham um importantíssimo papel no funcionamento do sistema capitalista: os serviços de produção de rotina e os serviços interpessoais.
Os primeiros “dizem respeito ao tipo de tarefas repetitivas que eram executadas pelo velho peão do capitalismo (...), na empresa de grande quantidade” (Reich, 1996: 249), constituindo o resultado da adaptação dos princípios tayloristas aos novos tempos. Diz o autor, “A «revolução da informação» pode ter tornado alguns de nós mais produtivos, mas produziu também grandes pilhas de dados em bruto que devem ser processados de um modo quase tão monótono como o dos trabalhadores das linhas de montagem” (Reich, 1996: 250). Por sua vez, os serviços interpessoais, embora apresentem semelhanças com a produção de rotina a nível de qualificação e salários, envolvem um contacto estandardizado não com objectos, mas sim com pessoas.
Distintos uns dos outros nos graus de qualificação, autonomia e remuneração, todos eles resultam de um processo de governamentalização que torna confundível a vida do trabalho e o trabalho da vida. Mais do que se basearem na disciplina – embora o coordenador-capataz continue a ser uma peça fundamental na gestão dos recursos humanos – as relações laborais são determinadas por níveis de conhecimento, criatividade, sensibilidade e comunicabilidade. Se a sociedade disciplinar se preocupava essencialmente na contenção da população (por exemplo, ao nível da saúde mental), o novo regime tenta orientar a acção das pessoas através de uma política de solicitação e de produção do humano. Como tal, o liberalismo, ao não defender a regulação do mercado, aposta contudo na criação das condições sociais que possibilitem uma economia de mercado, nomeadamente o investimento nas subjectividades trabalhadoras, nas suas escolhas e decisões (Foucault, 2004). Nas suas vidas, em suma.
A economia de informação, ao sofrer uma dependência crónica da produção de significados, vem consolidar este processo. Podemos afirmar que todos os aspectos da vida humana se tornaram fontes de produtividade: a apresentação – do sorriso ao tamanho das ancas (o físico); as qualificações académicas (o saber); as ideias (a imaginação); a reacção a um elogio ou advertimento (os sentimentos); a capacidade de argumentação (a expressão).
À primeira vista, tais tendências identificam-se apenas com a condição de trabalhador qualificado. No entanto, se tivermos em atenção o tipo de trabalho realizado pelos trabalhadores dos serviços interpessoais, como um porteiro ou uma empregada de um pronto-a-comer, chegaremos a diferentes conclusões. De acordo com Robert Reich, “Devem sorrir e transmitir confiança e bom humor, mesmo quando se sentem aborrecidos. Devem ser corteses e prestáveis, mesmo para o mais obnóxio dos clientes. Sobretudo, devem fazer os outros sentir-se felizes e à vontade” (Reich: 1996: 253).
Cada vez mais, não se tem um trabalho, é-se o trabalho que se tem, pelo menos até ao dia em que se o deixa de ter.


Novas resistências: das ruas de Milão aos «banlieus» de Paris

Não obstante a tentativa de se formatar o indíviduo de acordo com o trabalho que desempenha, a constante mudança de empregos impede uma ligação umbilical entre trabalho e trabalhador. Assim, o precário não tem emprego, mas vai sendo os empregos por que passa.
A inexistência de uma identidade entre indivíduo e trabalho vem despedaçar as actuais associações sindicais, que, apesar de todas as mutações já mencionadas, mantêm uma organização de acordo com o emprego, e não segundo a condição. Se, frequentemente, encontramos casos de empresas que realizam uma política preventiva da adesão sindical dos seus trabalhadores – McDonald´s, Ikea, Starbucks ou Wal-Mart, entre muitas outras – a verdade é que quando os gestores dos call-centers se deparam com os seus trabalhadores, encontram todo um conjunto de gente desconexa e desprotegida, cujas primeiras referências em termos de apoio e esclarecimento são, não os seus delegados sindicais (uma vez que estes não existem), mas os seus superiores hierárquicos.
No entanto, toda a situação de abuso e exploração acaba por criar as bases da sua resistência. Foi o que aconteceu em Milão, a dia 1 de Maio de 2001, durante a primeira parada May Day, uma tentativa de adaptação da tradicional manifestação do dia do trabalhador às condições laborais do século XXI. A primeira edição, que conseguiu reunir cerca de 5 000 pessoas, serviria de inspiração a outras manifestações May Day posteriormente organizadas, não apenas em Itália, mas em várias cidades europeias (entre as quais Lisboa).
Os seus protagonistas são essencialmente jovens de classe média, estudantes ou trabalhadores, conscientes da diferença de condição antes e depois da universidade e fartos de fingir que acreditar num sistema que não faz esforço nenhum para disfarçar que não acredita nada nas promessas que lhes fez e continua a fazer. E não se trata apenas da ausência de garantias sociais – habitação, educação, apoio ao emprego ou saúde, áreas sociais crescentemente vampirizadas por interesses económicos – mas de despender todas as suas energias ao serviço de uma ordem externa. No entender de Franco Berardi, a relação de exploração baseia-se na apropriação de conhecimento, de uma mais valia cognitiva, a ser aplicada na dinamização qualitativa e quantitativa do processo de produção. Porém, as exigências requeridas ultrapassam o suportável, verificando-se uma incompatibilidade entre a quantidade de informação que se deve apreender (ciberespaço) e a capacidade de absorção humana: “a aceleração dos intercâmbios informativos produziu e está a produzir um efeito patológico na mente humana individual (…) e colectiva. Os indivíduos não estão em condições de elaborar conscientemente a imensa e crescente massa de informação que entra nos seus computadores, nos seus telemóveis, nos seus ecrãs de televisão, nas suas agendas eléctricas e nas suas cabeças. (…) Parece que é indispensável seguir, conhecer, valorizar, assimilar e elaborar toda esta informação se se quer ser eficiente, competitivo, vencedor” (Berardi, 2003: 22).
Todavia, os trabalhadores “podem separar-se do castelo jurídico e financeiro do semiocapitalismo e construir uma relação directa com a sociedade, com os usuários. Talvez então se inicie o processo de autoorganização do trabalho cognitivo” (Berardi, 2003: 15). É nesta tendência que se inserem iniciativas como o May Day: a intervenção artística nas ruas, a afixação de faixas com mensagens de protesto em centros comerciais, ou a criação de novos discursos em torno do trabalho e da sociedade são sintomas de um colocar em causa, de um grito que desafia, de uma força colectiva que, cansada de carregar sobre os seus ombros o peso de todo um sistema económico, deseja produzir autonomamente, decidir livremente, viver dignamente.
É importante referir a participação de grupos de imigrantes – os mais explorados entre os explorados – em algumas paradas May Day, demonstração viva do cariz multiforme da precariedade, que na sua teia prende tanto a jovem a recibo-verde e endividada perante o banco ou a seguradora de saúde, como o cidadão de outro país a quem é negado o visto de residência.
A difusa existência do precariado leva a que seja igualmente difusa a sua concretização social, sendo impossível falar numa manifestação específica do seu poder. Se no May Day se torna mais identificável – por ser enformada por uma organização e um discurso – noutras situações surge de um modo mais ou menos subreptício, mais ou menos explosivo, sem necessidade de apresentar estatutos ou manifesto. Os motins dos banlieus franceses são deste facto um claro exemplo.
No dia 27 de Outubro de 2005, um grupo de dez jovens, na sua maioria estudantes liceais, voltavam de um jogo de futebol quando apareceu a polícia para os identificar. Os rapazes fugiram, iniciando-se uma perseguição pessoal. Três dos rapazes meteram-se por um beco sem saida, treparam para dentro de uma subestação eléctrica e foram electrocutados. Os que não morreram e foram presos, viriam a ser libertados sem acusações uma hora após a sua detenção. As mortes dos jovens despoletaram uma onda de revolta em Clichy-sous-Bois (Paris), que se viria a estender a outras cidades francófonas e europeias: durante quase um mês, a autoridade estatal foi totalmente colocada em causa, tendo as autoridades instaurado o estado de emergência e o recolher obrigatório (baseando-se numa lei da época da guerra com a Argélia, que não foi sequer aplicada no Maio de 68).
O incêndio de automóveis, a destruição de escolas e centros de assistência social, os ataques à polícia demonstram, em primeiro lugar, o fracasso do ideário urbanístico francês, destinado a agrupar os pobres e indesejáveis nuns tantos metros quadrados, garantindo que daí só saem para trabalhar. Se anteriormente a revolta se exprimia contra o centro (onde os automóveis eram roubados para posteriormente serem incendiados), em Outubro de 2005 a raiva não poupou a periferia e todas as suas estruturas adjacentes – o carro, a escola, o centro de assistência social. Porque centro e periferia são duas faces da mesma moeda.
Em segundo lugar, a violência e a destruição foram as formas de acção eleitas, face à total descrença nos resultados dos modelos de cidadania – o voto, a petição, a associação de jovens, a adesão ao sindicato. Na era do espectáculo, da imagem como meio primordial de comunicação entre as pessoas (como meio de comunicação do indivíduo consigo próprio), o escândalo assume uma importância acrescida. Como referia um dos jovens incendiários, “Com três noites de motins conseguimos algo, vamos aparecer na televisão e vão dar mais guita aos bairros” (Amorós, 2005).
Finalmente, é importante mencionar que não se trata de uma declaração de guerra social, mas sim da resposta a uma guerra declarada pelo sistema capitalista. Segundo Alèssi Dell´Umbria “Os jovens dos súburbios pobres são a nova figura deste neo-proletariado flexível e precarizado, e muitos deles serão pura e simplesmente desempregados-para-a-vida, essa nova figura da proletarização: os proletários dos quais o capital nem sequer tem necessidade” (Dell´Umbria, 2006: 134).
O que se passa nas ruas de Milão e nos banlieus de Paris é declaradamente diferente, com repercursões distintas. Mas a sua origem é manifestamente a mesma.

Para aonde ir?

Embora ainda tímidos, são vários os sinais que apontam para um renascimento do movimento operário (ou dos movimentos operários). É precisamente no ponto em que nos encontramos que se torna importante definir uma estratégia de luta capaz de inverter o cenário de derrota após derrota que tem assolado a esquerda.
A grande aposta do sistema capitalista baseia-se no desenvolvimento de um clima de medo (e na criação de uma série de bodes expiatórios – os imigrantes, os ciganos, os islâmicos), que leve as pessoas, no reino da instabilidade e da insegurança, a adoptarem a postura supostamente mais segura: calar e comer, engolir o sapo, andar na linha. E os resultados são amplamente visíveis: 41,8% da população activa desempregada ou precária3 (Rosa, 2006), 350 000 trabalhadores duplamente empregados, um quarto da população em situação de pobreza.
Alterar o rumo dos acontecimentos implica transferir a precariedade para o lado do adversário, incutindo-lhe medo e iniciando a reconquista do espaço que nos tem sido usurpado. Qualquer reivindicação laboral, social ou identitária deve ser estabelecida apenas como um instrumento ao serviço deste objectivo: de roubar o que nos foi roubado, para ser investido na nossa própria autonomia, na edificação de “espaços e momentos de recusa-e-criação” (Holloway, 2006: 3). O que implica, entre outros aspectos, não reduzir esta estratégia a um programa político fechado, reportado que é a um cenário futurista, mas sim ao presente, constantemente mutável, que interessa minar “de trincas ou fissuras ou rupturas na textura de dominação” (Holloway, 2006: 3).

José Nuno Matos

Bibliografia:

Agamben, Giorgio (1998), Poder Soberano e Vida Nua, Lisboa, Editorial Presença;

Amorós, Miguel (2005), «La colera del suburbio». http://www.alasbarricadas.org/noticias/?q=node/1793. Consultado a 14/07/08.

Arendt, Hannah (2001), A Condição Humana, Lisboa, Relógio D´Água;

Berardi, Franco (2003), La fábrica de la infelicidad, Madrid, Traficantes de sueños;

Dell´Umbria, Alèssi (2006), ¿Chusma?, Logroño, Pepitas de Calabaza;

Foucault, Michel (2004), Naissance de la biopolitique, Paris: Éditions Gallimard;

Holloway, John (2006), «Nós somos a crise do trabalho abstracto ». www.defenestrator.org/?q=node/959. Consultado a 06/04/08.

Reich, Robert (1996), O Trabalho das Nações, Lisboa, Quetzal;

Toret, Javier, Sguiglia, Nicolás, ´Cartografiando el exceso. Frontera y trabajo en los caminos del movimiento`, In AAVV, (2006), Fadaiat, libertad de movimiento – libertad de conocimiento, Valencia, Ed. Fadaiat, pp.106;

1 comentário: