sábado, 3 de abril de 2010

Uma reivindicação razoável - Miguel Serras Pereira


Será de mais - será sequer assim tanto - o "tudo" do "Queremos Tudo" do combate operário que nos propõem aqui, por esse caminho antecipando da melhor maneira as jornadas do próximo May Day ?
A resposta democrática à precariedade, à expropriação e à subordinação hierárquica do trabalho e do conjunto da actividade económica parece, em todo o caso, bastante simples, e pode traduzir-se numa reivindicação razoável, que não pressupõe descobertas científicas novas no campo da economia, da sociedade ou da história, não depende de soluções tecnológicas milagrosas, não implica a construção de direcções políticas qualificadas, nem a assunção de competências extraordinárias por agentes privilegiados e profissionais do governo dos outros.
Bastaria que, em contrapartida de um determinado montante de trabalho - igualitariamente estabelecido  pelo poder democrático igualitariamente exercido pelos cidadãos -, fosse garantido a todos um rendimento igualitário e condições de igualdade perante o mercado. Precise-se somente que esta política de igualização dos rendimentos não poderia deixar de ser acompanhada da democratização das condições de exercício da actividade económica e da divisão (política) do trabalho em vigor - consequência óbvia da transformação democrática da actual divisão hierárquica do trabalho político.
Tal seria o resultado da adopção de uma proposta do tipo da reiteradamente apresentada nesta matéria por Castoriadis, em termos que poderiam unir numa mesma plataforma tanto os precários rebeldes como os restantes trabalhadores cada vez mais precarizados. E poderia acrescentar-se que essa plataforma seria também uma via de saída para a crise global que a ordem estabelecida não para de reproduzir e agravar a todos os níveis e à escala planetária.
Embora tentar?

Poderíamos ficar por aqui. Mas talvez valha a pena indicar algumas das pistas da desmistificação da racionalidade económica empreendida por Castoriadis, a título de limpeza do terreno no plano das representações e dos "valores".Os excertos que se seguem são extraídos de um texto publicado em 1989 ("Fait et à faire", retomado em Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe V, Paris, Seuil, 1997):
A armação das racionalizações e das justificações da 'ciência económica' ruiu sob os golpes dos melhores representantes dessa mesma 'ciência' ao longo da década 1930-1940 (Sraffa, Robinson, Chamberlin, Kahn, Keynes, Kalecki, Schackle e vários outros) […] A ['ciência económica'] nada tem a dizer sobre a repartição do rendimento nacional. Nunca poderá explicar, e menos ainda justificar, a diferenciação dos salários e dos rendimentos. Tem de reconhecer que não há, espontaneamente, equilíbrio macro-económico e pleno emprego sob o capitalismo. […] Pressupõe - como Marx - que é possível uma imputação rigorosa do produto aos diferentes "factores" e "unidades" de produção - quando essa ideia é estritamente desprovida de sentido, o que destrói toda a base para uma diferenciação dos rendimentos, que não seja a das situações adquiridas e das relações de força (que regulam, objectivamente, a actual repartição do e dos rendimentos).
[…]
Não é concebível que [uma sociedade autónoma] institua o autogoverno das colectividades […] e que o exclua nas colectividades de produção [… que exclua] a realização da democracia no domínio em que os indivíduos passam metade do tempo da sua vida desperta.
[…]
Devemos dizê-lo mais claramente ainda: o preço a pagar pela liberdade é a destruição do económico como valor central e, de facto, único. […] Quem pode crer que a destruição da Terra poderá continuar por mais um século ao ritmo actual? Quem não vê que essa destruição seria ainda mais acelerada se os países pobres se industrializassem? E que fará o regime quando deixar de poder conter as populações fornecendo-lhes constantemente novos gadgets?
Se o resto da humanidade tiver de sair da sua miséria insuportável, e se a humanidade inteira quiser sobreviver neste planeta num steady and sustainable state, será necessário aceitarmos uma gestão de bom pai de família dos recursos do planeta, um controle radical da tecnologia e da produção, uma vida frugal. […] para assentar as ideias, podemos dizer que já seria bastante bom que pudéssemos garantir 'indefinidamente' a todos os habitantes da Terra o 'nível de vida' dos países ricos em 1929.
O que pode ser imposto por um regime neofascista; mas pode ser também livremente feito pela colectividade humana, organizada democraticamente […] abolindo o papel monstruoso da economia como fim e voltando a pô-la no seu lugar adequado, de simples meio da vida humana. Independentemente de muitas outras considerações […], é nesta perspectiva, e como momento desta transformação de valores, que a igualdade dos salários e dos rendimentos surge como um aspecto essencial.
Miguel Serras Pereira, Vias de Facto

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