A grande transformação
O fenómeno vulgarmente designado por Maio de 68 – um termo redutor que diminui todo um conjunto de manifestações de resistência política aos acontecimentos em curso na sociedade francesa – resultou essencialmente da recusa do modo de vida alicerçado no trabalho abstracto. Aos poucos, tornaram-se perceptíveis as contrariedades de uma sociedade baseada na produção e no consumo em massa. O sistema laboral fordista – inicialmente encarado como um dos pilares da estabilidade de uma população dilacerada por duas guerras mundiais – reduzia a capacidade de acção dos trabalhadores à repetição estandardizada de duas ou três tarefas. A regularidade e a estabilidade acabaram por dar lugar à fadiga e à depressão, e, logo, à diminuição dos níveis de produtividade. A revolta das fábricas e das universidades veio apenas tornar manifesto o que há muito estava latente.
Estes factores, consubstanciados pelos efeitos da crise petrolífera, levaram a uma reformulação das bases infraestruturais da economia, nomeadamente dos princípios orientadores dos mercados de trabalho. Conceitos como "flexibilidade", "racionalização de recursos humanos", "adaptação" e "competitividade" passaram a constituir parte do jargão economicista, anunciando uma nova ordem laboral inteiramente determinada pelos níveis de oferta e da procura de emprego. A adequação entre estes dois factores traduziu-se na criação de vínculos contratuais bastante frágeis — o contrato a prazo, o trabalho a tempo parcial, o trabalho temporário ou recibo-verde — de modo a facilitar tanto a contratação, como o despedimento.
A argumentação teórica em torno destas medidas esconde, no entanto, o acentuar da guerra social do capital contra as pessoas. Num contexto em que as empresas são dotadas de um poder de (des)localização quase ilimitado, seleccionando países e regiões de acordo com os respectivos níveis de submissão aos seus interesses, e em que a produção resulta não tanto da quantidade de trabalhadores, mas sim da sua qualidade, o acesso a bens e serviços de necessidade básica continua a depender da posse de um emprego. Como afirma Hannah Arendt, "O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho" (Arendt, 2001: 16). Assim, a ausência ou intermitência de uma fonte de rendimento impedem a mínima previsão de futuro pessoal, minam a existência, precarizam a vida.
No imaginário social dominante, fugir a este sentimento implica alinhar com os intentos do patronato e aceitar as regras de jogo por eles definidas — salários baixos, horas extraordinárias não pagas, ausência de protecção social — impondo nas empresas um ambiente de “paz social podre”: o boato, o esporádico erro propositado ou a danificação escondida do material são muitas vezes as únicas formas de resistência, sempre realizadas de uma forma anónima e secreta. Na opinião de Javier Toret e Nicólas, está em marcha um fenómeno generalizado de devir migrante do trabalho, isto é, a aproximação do paradigma laboral fordista ao paradigma do trabalho migrante: “As condições laborais de que sofrem os imigrantes (informalidade na contratação, vulnerabilidade, vínculo intenso entre território e emprego a realizar, desprotecção sindical, temporalidade, total disponibilidade,...) vão estendendo-se progressivamente ao resto dos trabalhadores” (Toret, Sguiglia, 2006: 106).
A estratégia público-empresarial1 (fruto de uma incessante invasão de espaços sociais – tanto materiais, como simbólicos –, facilitada pelo abandono do estado e dos tradicionais actores políticos da modernidade) consiste, num primeiro momento, na criação de um estado de excepção laboral que ultrapassa os regimes legais, por si só já restritivos (o recurso em massa aos “falsos recibos verdes” e o não pagamento de horas extraordinárias, por exemplo). Simultaneamente, desenvolvem-se acções de pressão, lobbying e ameaça sobre as autoridades, apontando a “rigidez das relações laborais” como um factor desincentivador do investimento e promotor da deslocalização de unidades produtivas e do desemprego. Satisfeitas algumas das reivindicações2, as empresas podem reiniciar este processo, criando um novo estado de excepção laboral e exigindo novas reformas. Desenvolve-se assim um cíclo de exploração em que a vida das pessoas se vê completamente nua de qualquer protecção, pois o que é de direito e o que é de facto se tornou praticamente indistinguível (Agamben, 1998).